Como podes estar sozinho, se te levas para todo o lado? Se existe um “eu” para se dar conta da solidão, então essa solidão não é real. Percepcionamos o mundo a partir do que está atrás da nossa face. De certo modo, imaginamo-nos como sendo o cérebro, com um corpo apenso.
Quando não pensamos nisso, parece que o “eu” não existe. Porém, quando entramos no processo racional, consideramos essa entidade, esse “eu”, a partir do qual costuramos a nossa narrativa e história. Conseguimos perceber, teoricamente, que o “eu” é uma construção psicológica, mas é-nos muito difícil ir além disso. O que há depois do eu?
A dificuldade disto tudo assenta na sua desarmante simplicidade. Peço-vos para ficarem atentos à vossa respiração. À barriga a inchar e esvaziar-se, à frescura que sentem na ponta do nariz, à viagem que o ar faz de e para os pulmões. Ganhem um minuto nesse exercício. Quem é que está a tomar atenção? E de que forma é que o sujeito da atenção é diferente da atenção em si? Se sentem que há um centro, a partir do qual a atenção nasce, procurem esse centro. O que encontram?
Este caminho pode levar-nos à constatação de que a dicotomia sujeito/objeto é uma elaboração conceptual, a partir da qual construímos um mundo de significância. Lá fora, precisamos desses códigos e dum conjunto de comportamentos aprendidos e executados inconscientemente, por forma a desempenharmos as nossas funções sociais. No entanto, podemos ganhar a habilidade de nos tornarmos conscientes da consciência, e que o “eu” é uma ilusão, ou uma realidade menor. Se procurarem o vosso eu, repararão que não é os pensamentos, não é as memórias e não é os sentimentos. O que sobra?
A iluminação é isso, um desprendimento total ao “eu”. Não é abolir o ego, atenção, mas é ser consciência que o alberga, da mesma maneira que alberga pensamentos e sons. Uma das dificuldades em falar disto é a necessidade de usar palavras, que são conceitos abstratos, e acabam por ficar subjugadas a essa visão, e requerer a divisão sujeito/objeto. É como se a “verdadeira” realidade existisse antes da linguagem, e esta última mais não fosse que um entre muitos dos seus tentáculos.
Se virmos a ilusão do “eu”, somos obrigados a anular a divisão sujeito/objeto, dado que o sujeito, enquanto centro de sentido, não é real. Assim, também o objeto não o é, porque existe somente enquanto repositório de significado, conferido pelo “eu”. Como nos poderemos referir, então, a essa realidade anterior à linguagem? Chamemos-lhe consciência, o termo usado pelo neurocientista e filósofo, Sam Harris. (Reparem como tenho utilizado de forma mais ou menos sinónima os termos realidade e consciência.)
Consciência é, assim, tudo o “que é”; aquilo que julgamos experienciar não passa duma manifestação da consciência.
Para algumas pessoas, pode ser muito assustador esta sensação de impotência e vazio, quando confrontadas com esta realidade. Isso é ainda devido ao ego, e ao choque que sente pelo confronto com algo que o mesmo não pode absorver. O mesmo se passa em relação ao medo de morrer, por exemplo. Isto deve-se à compreensão do “eu” de que a morte marca o seu fim. De certa forma, poderíamos dizer que a morte é a derradeira maneira de atingirmos a iluminação. É por isso que deus surgiu, juntamente com a promessa de vida eterna, devido ao pavor do “eu” ao seu desaparecimento. Quando entendemos que o “eu” é uma ilusão e que, portanto, a morte mais não é que uma mudança, entre tantas, da realidade, então o medo que sentimos perde o seu significado (mas não a sua existência).
Para ler o último artigo de Fábio Nobre clique aqui.